27 de setembro de 2013

UMA JANELA PARA A FILOSOFIA
Mauricio A. Guerriere
Um rapaz sedento de saber ouviu falar acerca de um velho filósofo que vivia numa casa de madeira próxima à floresta. Pouco se sabia das atividades deste velho, muito menos de sua juventude. Mas motivado por uma curiosidade pujante, o rapaz dirigiu-se à casa do filósofo com o intuito de iniciar-se na arte de filosofar. Para o jovem isso lhe traria tranqüilidade e paz interior. Imaginou-se um daqueles discípulos orientais que
procuram um mestre asceta para encaminhá-lo nas virtudes do espírito e do transcendente.
Munido com um caderno e uma caneta, o jovem bateu à porta da casa de madeira. Após alguns segundos a porta se abriu e surgiu a imagem de um velho moreno, quase careca, com uns óculos redondos pousados sobre o nariz. Usava calças largas e sandálias franciscanas. Ao ver o jovem, esboçou na face um leve espanto. - Pois não? - disse.
- Pode parecer besteira... o senhor é filósofo, não é? Pois bem... eu gostaria de aprender filosofia, mas se não der, tudo bem...
O velho filósofo fez uma expressão interrogativa e permaneceu em silêncio por alguns segundos.
- Aprender filosofia... acredita que eu possa lhe ensinar? - prosseguiu o velho.
- Tenho certeza disso! - querendo agradar - acho que o senhor é um grande sábio, não é?
- Se eu disse que sim, filho, já seria um péssimo professor. Quem neste mundo é sábio? Existem muitos? Não creio, pois o mundo continua perverso. - e acrescentou fazendo um gesto vago - entre, filho. Não tem medo?
- Não, de jeito nenhum - respondeu o jovem terminando de anotar as palavras do velho em seu caderno - não tenho medo não.
- Isso já é um bom começo.
O velho foi entrando e o rapaz o seguiu com o caderno. O filósofo voltou-se e disse: - Ah, deixe seu caderno aí fora. Na saída você pega.
O jovem ficou confuso, mas atendeu à solicitação. Entraram em uma sala com várias almofadas pelo chão e o anfitrião convidou o visitante para sentar-se. Havia uma janela de vidro fechada no centro da parede que possibilitava a visão dos fundos da casa. Era uma bela paisagem. Na mesma sala havia uma estante repleta de livros e uma escrivaninha ao lado.
O rapaz estava ansiosíssimo.
- O que você vê ali? - perguntou o velho apontando para a janela. - Uma janela.
O velho sorriu.
- Uma janela - acrescentou o rapaz, querendo mostrar-se inteligente - mas com uma paisagem atrás. - Olhou para o velho e este ainda sorria.
- A paisagem é formada por um rio, árvores, capim rasteiro. - Ainda o sorriso do filósofo.
- Um rio com uma forte correnteza - continuou o jovem -, as árvores com uma coloração branca do lado direito da folhagem, o capim molhado... Ah! Uma chuvinha leve molha o capim.
O velho levantou-se, ainda sorrindo, e murmurou baixinho: “é um começo...” Foi se afastando em direção à escrivaninha sob o olhar interrogativo do jovem. - Fique à vontade, eu tenho umas coisinhas a fazer.
Dizendo isso foi sentar-se à escrivaninha e começou a folhear uns manuscritos. O visitante ficou confuso, olhou para a janela pensativo e tentou ver algo mais na paisagem que ainda não tinha dito. Não conseguiu. “O que o velho quer?” Continuou vendo a paisagem através do vidro. Ela continuava a mesma.
- É bonita a paisagem, né? - perguntou ao filósofo.
O velho pareceu nem ouvir. “O que tenho que dizer?” O rapaz continuava olhando para a janela. Nada havia mudado.
“O que isso tem a ver com eu querer aprender filosofia? O que é a filosofia afinal?
Levantou-se e foi em direção à estante de livros. Escolheu um com os olhos e quando estendeu a mão para pegá-lo foi repreendido pelo velho.
- Não. Não pegue nenhum livro aí.
- Não pode? - perguntou o rapaz meio assustado. - Por enquanto não.
“Que diabo de lição é esta?” O jovem estava totalmente confuso. “Será que este velho é caduco? Eu quero aprender e nem posso olhar um livro?” Sentou-se novamente em frente à janela e ficou pensativo. Tudo estava igual.
Algumas horas se passaram e a tarde começava a morrer. O velho levantou-se e dirigiu-se ao rapaz, que não havia tirado os olhos da janela.
Já está ficando tarde. É melhor você ir.
- Mas... E a aula? - O velho sorriu mais uma vez abriu a porta para o jovem sair. - Boa tarde, filho. Não esqueça o caderno lá fora.
O rapaz zangou-se. Ficou uns segundos parado, olhou uma última vez para a janela e depois saiu. - Boa tarde... Professor.
Meu nome é Américo. Pode me chamar assim.
No outro dia, mais ou menos na mesma hora o rapaz voltou a bater à porta do velho Américo. Havia pensado a noite inteira. Quase pensou em desistir, mas um estalo na mente o fez mudar de idéia e continuar a busca. “Acho que descobrir o que é filosofia”. Pensou.
- Boa tarde, Filho. Que surpresa.
- Seu Américo, acho que descobri o que é filosofia!
O velho olhou meio cético e foi entrando na casa arrastando as sandálias. - Deixe o caderno lá fora - pediu o filósofo já de costas.
Sentaram-se ambos novamente próximo à janela. O velho pôs-se em atitude de escuta. - Olha como o senhor mostrou-me uma janela com uma paisagem e eu estava querendo aprender filosofia, conclui que filosofar é contemplar as coisas belas da natureza, sentir estas coisas e interiorizá-las. É um tipo de contemplação! O velho ficou sério, impassível, fitando o rosto sorridente do jovem. Passados alguns segundos o rapaz perguntou: - Acertei?
- Não estamos em um jogo de adivinhações.
- Mas não é isso que é a filosofia? - perguntou preocupado.
O velho Américo sorriu. O jovem animou-se e sorriu também. De súbito, o velho ficou sério novamente e disse:
Não. Não é isso. - Levantou-se e foi sentar-se à escrivaninha. O sorriso do jovem foi se desfazendo aos poucos e a raiva tomou conta de seu corpo.
- Não dá pra dizer logo o que é?
O velho permaneceu calado folheando os manuscritos. O rapaz estava irritado ao extremo e teve vontade de ir embora. Mas insistiu em ficar, pois era persistente em tudo o que fazia. Voltou-se para a janela e pôs-se a fixá-la com os olhos. Estava igual. As árvores com a coloração branca do lado direito da folhagem, o rio com a correnteza forte, a relva molhada e a chuvinha que não parava de cair. Não conseguia ver mais nada além disso.
- Tenho que tentar modificar a paisagem com pensamento? É isso? - Não - respondeu o velho tranqüilo.
Novamente a janela e a paisagem. Cansado daquilo, o rapaz começou a observar as fotos dependuradas pelas paredes da sala. Em uma delas, um jovem, provavelmente o próprio Américo, falava na rua para um grupo de pessoas, aparentemente operários. Em outra foto ele e uma mulher se beijavam. E ainda outra, aparecia ele sentado, já com mais idade, em uma assembléia com inúmeras pessoas.
A última foto que o rapaz observou mostrava quatro rapazes, dentre eles um que parecia o velho filósofo, em sua juventude, brindando com copos de cerveja; nesta todos sorriam.
Tendo passado algumas horas, o rapaz foi tomado por uma súbita curiosidade. “Por que o lado direito das árvores possui essa coloração branca? “Por que este rio tem essa correnteza tão forte?” “Por que esta chuvinha fina não pára?” Fez cada uma destas perguntas ao filósofo. A resposta foi o silêncio e um sorriso que o jovem não pode perceber. “É um começo”, sussurrou Américo para si mesmo, “é um começo...” O rapaz não entendeu nada e zangou-se.
No dia seguinte, repetiu-se a mesma coisa. O rapaz era insistente. A curiosidade para ele era como um vício difícil de abandonar.
- Posso pegar um livro, seu Américo? Ainda não.
- Mas tem vários sobre filosofia aí, porque eu não posso ler?
- Você me pediu uma coisa. Queria aprender filosofia. Se quer aprender com os livros, basta comprá-los.
O rapaz desconcertou-se. Na sala a mesma cena dos dias anteriores. O jovem em frente à janela e o velho na escrivaninha praticamente não se comunicava. Na cabeça do rapaz pairavam as dúvidas do dia anterior. “Por que a cor branca do lado direito das árvores? Por que aquela correnteza forte? Por que a chuvinha que não pára?”... “Por que a cor branca nas árvores, a correnteza, a chuvinha? Cada vez mais seus olhos se prendiam na janela. “Por que a cor branca? Por que a correnteza? Por que a
chuvinha?”... “A cor branca, a correnteza a chuvinha...” Aquelas dúvidas na cabeça, a janela imóvel postando-se entre ele e a imponência da paisagem e o silêncio enigmático do velho deixavam o rapaz extremamente irritado e incomodado. “Paisagem com árvores com cor branca por quê? Por que correnteza forte e chuvinha que não pára?”
E olhava a janela irritado. “Cor branca correnteza... chuvinha...” “Por que a paisagem é assim?” “Cor branca, correnteza e chuvinha. A janela... a paisagem. O velho não fala nada...” Sua mente estava a ponto de se desorientar. Suas perguntas ribombavam como vozes que ecoavam em seu cérebro: “Por que a cor branca nas árvores? Por que a correnteza forte do rio? Por que a chuva fina não cessa? O jovem ia se agastando, mas as questões permaneciam, como se tivessem vida própria. “Por que a cor branca, por que correnteza forte, por que chuvinha incessante... Por quê? Cor branca...”
Tomado por uma raiva súbita e explosiva que o fez agir quase que inconscientemente, o rapaz pegou um banquinho que estava na sala e atirou-o contra o vidro da janela com toda a força. Os estilhaços se espalharam por dentro e por fora da casa. Não sobrou quase nada da vidraça. O barulho chamou a atenção do velho que, após um sobressalto, voltou-se calmamente para trás. Viu o jovem de pé, arfando, com o desespero estampado em seu semblante. O velho fitava-o enternecido, com um aspecto paternal. Sua feição confundiu ainda mais o jovem, que esperava algum tipo de repreensão.
- Seu Américo, desculpa... Eu não sei o que dizer, meu Deus... - Vou dar um jeito de limpar... É que...
O velho sorriu mais uma vez.
- Não vai até lá? Perguntou o filósofo. O rapaz ficou confuso.
Vá, vá olhar.
O visitante titubeou, mas foi até a janela destruída. Seus tênis fizeram estalar alguns cacos pelo chão. Parou, olhou novamente o velho e depois enfiou cuidadosamente a cabeça para fora da janela, evitando encostar nos cacos de vidro restantes. A visão que teve foi como o ascender das luzes em uma festa surpresa, onde a curiosidade proporcionada pela escuridão é satisfeita pela aparição do bolo, dos parentes, dos amigos, dos enfeites, etc. A paisagem que o jovem via antes através do vidro pareceu esticar-se ao infinito, possibilitando que ele contemplasse as respostas para aqueles seus questionamentos.
Do lado contrário à correnteza do rio, bem próximo da casa, uma bela cachoeira lançava suas águas sobre algumas pedras mais salientes da pequena montanha. Com a força da queda, a água espirrava longe e molhava, como uma chuva fina, a relva nas imediações. “Era por isso a correnteza forte! E a chuva não é chuva, são respingos! Por isso não cessa!” A descoberta fez o jovem regozijar-se.
Olhando então para o lado direito, pôde ver ao longe, uma enorme indústria que lançava um pó branco no ar. O vento trazia o pó até a folhagem das árvores. Mesmo distante, dava para ver que algumas árvores ao redor da indústria estavam totalmente brancas e muitas outras estavam mortas. “O branco das árvores é a poluição da indústria. Justo daquela que se diz tão preocupada com o meio-ambiente...” Da janela dava pra ver também a estradinha que passava em frente à indústria e seguia até a entrada da cidade. Por ela passavam vários operários que deixavam o seu turno, todos com um aspecto triste, sofrido e de insatisfação. Alguns conversavam, outros tossiam, outros simplesmente acompanhavam aquele cortejo disperso e lúgubre.
Ao mesmo tempo que o rapaz satisfez as suas primeiras curiosidades, outras imediatamente foram surgindo: Por que o aspecto taciturno e sofrido dos operários? Eles não deviam estar satisfeitos por terem um trabalho e, principalmente, por ter acabado o seu expediente? Por que uma empresa tida como modelo na cidade não se preocupa com o pó lançado sobre as árvores? E por que é justamente ela a que mais fala em defesa do meio ambiente?
Ao retomar a cabeça para dentro da casa, o rapaz deparou-se com o velho Américo de pé ao seu lado, com um sorriso algo maroto estampado nos lábios. E então? - perguntou o filósofo - O que viu agora?
O rapaz contou a sua experiência e as novas inquietações surgidas. O velho ouviu tudo
atentamente e foi conversando também com o jovem.
- Bem filho, você quebrou a janela. Creio que agora você não precisa mais de mim. Este foi o início de sua descoberta da filosofia. Você foi um bom aluno e já começou a filosofar. Para prosseguir, vá resolver suas novas inquietações. Mas jamais se esqueça: nunca olhe as coisas somente através das janelas - e fazendo um gesto vago em direção aos livros acrescentou - o dia que precisar de livros...
O rapaz estava eufórico. Sorriu um pouco embasbacado. Tinha a sensação de que, enfim, compreendera. - Tenho que ir embora agora, não é?
- Mas apareça sempre para conversarmos. Não pense que já sabe tudo... - Com certeza. Estarei sempre aqui.
Após despedirem-se, o jovem saiu e nem se preocupou de pegar o caderno na porta. - E o caderno? Você esqueceu!
- Pode ficar com ele. Não precisei mesmo...
- Lembre-se de me pagar o concerto da janela! O rapaz, já virando uma curva na estrada, fez sinal de positivo, sorriu e desapareceu na estrada.
Alguns anos se passaram. Em contato com os amigos, o jovem tentava, depois de muito tempo de busca, relatar aos amigos e fazê-los entender as suas descobertas com relação a vários aspectos da realidade. Conversava sobre as falsas verdades que prevaleciam entre os homens, sobre a manipulação das pessoas por interesses de grupos, sobre o sentido da vida do ser humano, sobre as estruturas sociais
massacrantes... Mas nem sempre conseguia convencer. Muitos nada entendiam, não queriam entender, fechavam os ouvidos e até se chateavam com a conversa. Estes, eram sempre os mesmos e sempre iguais, nunca mudavam. Viviam na sua vidinha medíocre na ilusão de estarem felizes e satisfeitos. Eram controlados pelo mundo e moviam-se sem vontade própria, embora se achassem livres. Mas na verdade, eles não haviam quebrado a janela...